sábado, 24 de novembro de 2007

De quando a lei substitui a democracia

É positivo o projeto que obriga políticos eleitos a matricular seus filhos em escolas públicas?


GUSTAVO IOSCHPE

BERTOLT BRECHT disse que "há homens que lutam um dia e são bons. Há homens que lutam por um ano e são melhores. Há homens que lutam por vários anos e são muito bons. Há outros que lutam durante toda a vida: esses são os imprescindíveis". De acordo com essa e várias outras definições, o senador Cristovam Buarque é um homem imprescindível à nossa República. Sua luta diuturna pela causa da educação em um país tão ignorante o torna merecedor de nosso respeito e nossa admiração.
Como sabe o vulgo, porém, o demo está nos detalhes e de boas intenções a sua casa está cheia. O novo capítulo na cruzada do senador não deve virar realidade e, mesmo que passe a existir, não deve render os frutos que ele almeja. Trata-se da idéia de obrigar, por lei, os filhos de ocupantes de cargos eletivos a cursar a escola pública.
A lógica, imagino, é: se os políticos sentissem na própria pele o fracasso educacional brasileiro, se preocupariam mais com as nossas escolas públicas, levando à sua melhoria. Há, de saída, problemas de exeqüibilidade. Como faríamos o recenseamento dos filhos dos inúmeros ocupantes de cargos eletivos do país?
Mais importante: como garantiríamos que esses pais não matriculariam as crianças em escolas públicas só para cumprir a lei e então as colocariam em escolas particulares, onde elas realmente estudariam?
Afora os problemas de ordem prática, o mais preocupante e desalentador é o pensamento que lhe é subjacente. Fica implícita na proposta do senador a leitura que faz de seus pares: pessoas públicas que só se ocupariam de problemas públicos se se tornassem problemas privados Se é assim, então deveríamos abolir o Congresso e deixar que cada brasileiro legisle em causa própria -ao menos seria mais barato e nos pouparia dos vexames dos deputados e senadores.
A proposta do senador revela o desconhecimento que nós, brasileiros, temos do funcionamento de uma democracia plena. Acreditamos só nos formalismos democráticos -eleições, leis etc.-, mas não em sua essência: o povo é soberano e decide os seus destinos por meio dos seus servidores eleitos, a classe política.
Se entendêssemos essa lógica, senadores saberiam que é inútil instituir uma legislação se ela contraria a vontade popular, pois se torna letra morta. Compreenderiam o corolário desse pensamento: a única maneira de gerar uma mudança em instituição pública, como o é o sistema escolar, é por meio da mobilização e da conscientização de toda a sociedade.
A escola brasileira não é ruim porque o político não coloca seu filho nela -ela é ruim porque prefeitos, governadores e presidentes não perdem voto se a escola for mal nem ganham voto se a escola vai bem.
Ainda está plasmada na cabeça do brasileiro médio a idéia de que a boa escola é aquela com belas paredes pintadas, boa merenda, uma linda quadra poliesportiva e cheia de professores bem pagos e com muitos diplomas. Não entendem que esses são apenas supostos meios (a maioria de pequeno impacto no aprendizado), e não a finalidade do sistema escolar, que é educar as nossas crianças.
Enquanto não vencermos essa batalha do convencimento e tornarmos o aprendizado um assunto eleitoralmente importante, toda legislação aprovada cairá no oblívio.
Enquanto prosperar a mentalidade patrimonialista e elitista dos que estão no poder, não duvido que políticos usem verba obtida em falcatruas para construir boas escolas públicas para seus filhos e chegados.
Há quase dois anos, fui contratado pela UNDP e pelo Banco Mundial para prestar uma consultoria ao nosso Ministério da Educação sobre financiamento internacional da educação, em que se procurava sintetizar a experiência dos países que obtiveram grande sucesso educacional e econômico em curto espaço de tempo. Uma das conclusões finais do estudo era que, nos países em que a educação dá certo, o consenso social em torno do tema substitui a legislação, mas no Brasil, um país no qual a educação até agora fracassa, se acredita que a legislação substitui o consenso.
Por alguma razão obscura, o estudo jamais foi publicado. Acho que porque não era isso que o pessoal de Brasília queria ouvir e, muito menos, contar.


GUSTAVO IOSCHPE, 30, mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale, com especialização em economia da educação, é articulista da revista "Veja" e foi colaborador da Folha. É autor, entre outras obras, de "A Ignorância Custa um Mundo" (Prêmio Jabuti 2005).

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